Sem Lama Não Há Lótus

Como humanos, todos temos nossas qualidades e defeitos. Infelizmente,  a nossa condição humana nos faz cair com frequência na narrativa do desculpismo, e passamos a vida tentando fugir dos momentos que nos fazem encarar quem realmente somos, normalmente nos anestesiando através de distrações  (a internet, a televisão, a conversa furada, o consumismo, etc.)

  Quem nunca pecou, que jogue a primeira pedra! Pois é , quem entre nós não carrega consigo o peso de uma infração, de uma ofensa, de um erro -  seja ele pequeno ou grande? Quem não se sente limitado pelas suas falhas e se pega, com uma certa constância, caindo nas mesmas ciladas emocionais ou armadilhas montadas pelo nosso ego, que nos levam a decisões e atitudes incoerentes em relação a maneira que gostaríamos de ser?

O fato é que, se procurarmos em nosso ser mais íntimo, temos consciência do que é certo e errado, sabemos quando estamos sendo orgulhosos e egoístas, sabemos quando estamos errados, temos consciência quando estamos agindo por inveja ou vingança, porém normalmente temos dificuldades de enxergar nossas deficiências, e mais ainda de admitir nossas falhas. Sempre achamos uma razão para nosso comportamento, uma desculpa para os outros e para nós mesmos.  E assim vamos levando a vida, varrendo a sujeira para debaixo do tapete.

É bem verdade que temos também nossas qualidades, as quais, muitas vezes, direta ou indiretamente, gostamos de realçar para os outros – uma pequena dose de orgulho de nossa parte, talvez? Pode parecer que a minha posição é um tanto quanto negativa, porém não é bem assim.  Por isso me agrada a expressão “sem lama, não há lótus.”

A linda flor do lótus cresce na água lodosa. Ela se utiliza do lama para crescer. Assim somos nós! Ralamos tentando nos melhorar, nos sujamos no lodo, caímos e recaímos; porém, com vontade e muito esforço podemos florescer em lótus.  

  O caminho do mindfulness é uma rota que nos levará a germinação da nossa flor de lótus. Apesar de estarmos ainda no lama, todo momento de consciência plena, é um momento de despertamento, de crescimento, porque nos acorda para a realidade de nosso comportamento, para a bagagem  emocional que carregamos, para as histórias que criamos que nos mantém ignorantes de nossa potencialidade.

  Este processo de despertamento acontece simples e gradativamente quando nos sentamos para meditar. No princípio é difícil, tudo parece ser um empecilho, mas se mantivermos nossa determinação e perseverarmos, poderemos acordar para a realidade de quem realmente somos (o lótus)  e o que fazemos em nossa vida diária que nos mantém apenas em estado de sementes, sem oportunidade de florescimento.

  Quando sentamos para meditar e simplesmente observamos os nossos pensamentos, nossos sentimentos e sensações, sem nos envolvermos nas histórias que criamos e sem nos julgarmos pelo que observamos, pouco a pouco somos capazes de ver claramente o que se passa, de notar como nos manipulamos a nós e aos outros, como sempre continuamos agindo da mesma forma quando as coisas não se passam como gostaríamos ou quando alguém nos irrita. Nosso comportamento é totalmente baseado em nossos condicionamentos, os quais normalmente ignoramos e que consequentemente nos causam muito sofrimento.

  Esta claridade de visão é que traz mudanças, que nos faz subir do lodo em direção ao sol e ao ar livre e que nos propulsiona à transformação. Só  com esta clareza interior é que compreenderemos as dificuldades de nossa condição humana e a nossa capacidade de encontrar forças para resistir às ciladas de nosso ego. Por exemplo, no momento que alguém faz um comentário atrevido em nossa direção, simplesmente observamos o que se passa dentro de nós; os pensamentos que surgem, os sentimentos que vêm à tona, as sensações que brotam em nossos corpos. E notamos que não vale a pena retrucar. Tudo isso acontece numa fração de minuto, e depois que tudo passa, somos capazes de ver como a nossa presença naquele momento foi útil. A raiva passa rapidamente quando não a alimentamos com as histórias que criamos em nossas mentes através de pensamentos incessantes.  Esta é a verdadeira presença de espírito. A prática meditativa diária nos prepara para exercermos esta presença quando , em nosso dia-a-dia, somos levados pela enxurrada de sentimentos e pensamentos improdutivos.

  A monja Pema Chodron diz o seguinte num dos seus livros: “a primeira coisa que acontece na meditação é que começamos a ver o que está acontecendo. Apesar de ainda fugirmos e ainda nos entregamos às nossas fraquezas, vemos o que estamos fazendo claramente. Alguém poderia pensar que a nossa visão clara da situação nos faria mudar imediatamente, mas isso não acontece. Então, por muito tempo, nós apenas vemos claramente o que se passa. Na medida em que nos dispomos a ver claramente nossa indulgência e nossa repressão, elas começam a se desgastar. Este desgastamento não é exatamente o mesmo que o desaparecimento. Em vez disso, surge uma perspectiva mais ampla, generosa e esclarecida. Assim, deixamos que se dissolvam os pensamentos e retornamos ao momento presente.” (tradução própria do trecho do livro  When Things Fall Apart: Heart Advice for Difficult Times)

  Este processo requer tempo, paciência e dedicação. Como sempre enfatizo, isso não ocorre da noite para o dia. A nossa perseverança dará espaço para a expansão – sairemos de nossa condição de sementes em potencial para o florescimento em lótus, e aí então encontraremos a verdadeira paz interior.